sábado, 12 de novembro de 2011

Tudo que é bom vicia.

Carta Capital, 04 de março de 2003
Sócrates



Tudo que é bom vicia.





O que faria se recebesse de presente uma passagem de primeira classe para o lugar que você bem entendesse? Aceitaria? Creio que quase todas as pessoas responderiam que sim. Mas é importante ter em conta que este tipo de presente pode provocar grandes dores de cabeça no futuro. É que o que é bom vicia. Se tu não tens condições de compra-la com teus próprios recursos é bom que penses bem antes de aceitar. Como se adaptaria novamente a viajar na cozinha do avião. Todo espremido, sem lugar para colocar as pernas, vizinho de uma pessoa inquieta e falante e agüentando eventualmente o mau humor das comissárias? É, não seria nada fácil. Depois daquela mordomia toda! Pois isso acontece em tudo que fazemos. Um Presidente da República, por exemplo. Passa anos e anos sendo paparicado o tempo todo. Dezenas de auxiliares não o deixam passar nenhuma dificuldade. Tem carros a disposição, aviões para viajar quando quiser, cozinheiros de primeira, etc..Não deve andar nem com carteira. Dinheiro passa a ser supérfluo. Aonde vai, a porta está sempre aberta. É uma mordomia só. Os problemas aparecem quando ele deixa o cargo. Volta a ser um cidadão quase comum. Deve dar uma ressaca daquelas. E a saudade do Palácio? Deve ser insuportável. Principalmente para aqueles que gostariam ou se sentem reis. Não é à toa que tem gente que se mata para não perder os privilégios. 
Quando vamos a um restaurante gostamos de ser atendidos com atenção particular, ter sempre um garçom a se preocupar com o nosso bem estar, apreciar um bom prato e um vinho de uma safra especial. Mas temos consciência que estes são eventos especiais e não nos tornamos dependentes deles. Se isso não for verdade estaremos em maus lençóis. Todos nós conhecemos algumas figuras que não vivem se não estiverem fazendo parte das fofocas semanais e se não forem convidados para festas de fachada e fotos de revistas. A própria disseminação destes programas de televisão cujo único motivo é ficar bisbilhotando a vida dos outros é um bom parâmetro da realidade atual. Participar deles passou a ser um sonho para muita gente. Atrás da fama, de novas oportunidades, da grana em jogo ou de qualquer outro motivo. É o símbolo atual. O porém é o que vem depois quando tudo acaba --quando dá a meia-noite e a Cinderela se vê descalça e maltrapilha. Ao contrário do conto, em geral, a coisa termina mal. Muito mal, aliás. No futebol, por culpa da notoriedade natural do meio, as condições são ainda mais perversas para quem não sabe digerir centenas de estímulos diários que nos tentam até o extremo de nossas capacidades. Quase tudo dependente do paternalismo endêmico que assola esta estrutura. Parecido com o dos políticos em geral que já nem sabem bem como fazer uma reserva aérea ou uma compra banal pois há sempre alguém a fazer por ele. 
Voltando à história do bilhete de primeira classe, imaginem jogar uma final de campeonato ou uma partida de Copa do Mundo e logo depois enfrentar um campeonato vagabundo, num campo horrível e sem público. Não é fácil manter o profissionalismo nestas condições. Mesmo que tantos insistam en dizer que é igual a qualquer outro, este é o pior jogo para se jogar. Não dá a mínima vontade de participar. Todo mundo gostaria de escapar de uma dessas. Uma vez fui jogar em uma capital do norte onde não há tradição no futebol. Era o último jogo do ano depois de quinze dias fora de casa, campo em péssimas condições e time adversário de qualidade limitada. Tudo contra. O primeiro tempo foi de dar dó. O jogo se arrastava. O público que acorreu à partida, mesmo sem conforto, até que se comportou bem, mas que o que estava assistindo era de péssima qualidade, não tenho dúvidas. No intervalo resolvi animar um pouco a partida. Passei a só jogar de calcanhar. O que era um desafio absurdo passou a ser o espetáculo do evento. Todos passaram a reagir cada vez que tocava na bola. No final, tive minha única chance de gol. Estava fora da área, mas a saída estabanada do goleiro me deu a oportunidade. O problema era acertar com o calcanhar. Virei-me todo, quase caí e arrisquei. A bola fez uma curva maravilhosa e entrou no meio do gol adversário. Foi o gol mais bonito que fiz. Tudo por culpa da precariedade da situação.  

Liderança

Como é que pode sobreviver uma equipe sem líder, sem comando? É o que percebemos no time atual do Corinthians. Outro dia, depois de uma substituição, notamos uma reordenação na colocação dos zagueiros que me pareceu incoerente com tudo aquilo que tínhamos visto até ali. Não demorou nem um minuto para que a formação anterior se restaurasse sem que tivesse sido orientada pelo banco de reservas. Um claro caso de iniciativa (positiva) de quem estava em campo que porém não foi assumida por ninguém. Muito menos pelo capitão da equipe que me parece, além de ser tecnicamente um dos jogadores mais discretos da equipe, não possuir ascendência sobre os demais e muito menos um caráter adequado para tal. O Corinthians de hoje não tem referencia. Não tem quem dirija seus passos, não tem quem cobre sua postura. É um time muitas vezes sem alma, sem vontade de vencer; acomodado naquilo que já fez e sem coragem de buscar mais e melhor. E de uma tristeza que volta e meia se apresenta para desespero de seus integrantes. Ora, não dá para fazer arte sem alegria, sem liberdade, sem prazer extremo. Quando o sentimento é esse, melhor nem tentar, porém em futebol não dá para escapar ou fugir dos compromissos; não dá para marcar hora ou esperar que a inspiração se apresente. É necessário estar sempre pronto para realizar aquilo a que propôs sem pestanejar, sem ter a mínima dúvida de que pode e deve faze-lo. E, pior, com a agravante de trabalhar junto ao público que principalmente no caso corintiano, cobra e muito a postura da equipe e os resultados decorrentes. Uma verdadeira pedreira que não é para qualquer um. 
O que é definitivo e absolutamente fundamental é que exista um líder que assuma esta responsabilidade. 
Há vários tipos ou arremedos de liderança. A que menos funciona é que aquela induzida, extemporânea que tenta fazer com que alguém sem o minimo de tendencia para esta função se apresente para fazer este papel. É a escolhida de cima para baixo sem se dar conta que liderança é um cargo de confiança determinado pelos liderados e jamais uma imposição. É claro que em futebol este exemplo se repete sempre que se contrata um treinador; o que nem sempre ocorre é uma resposta coerente com o que se espera por parte dos jogadores que comanda. O que não é possível acontecer é a escolha de um capitão de equipe que não represente seu papel em campo; que não seja respeitado como deveria por seus companheiros. Tudo isso depende da forma e do contexto em que ele está inserido. Este comandante contratado, o mais das vezes não consegue se tornar um líder. Sendo ali colocado por uma decisão de terceiros, como é o caso do futebol, geralmente cria conflitos com quem trabalha. No mínimo, jamais será uma unanimidade. Sempre haverá quem se ache desprezado ou menosprezado por ele. Muito pior é se o treinador acreditar que é mais importante que qualquer dos seus jogadores; se achar mais importante e fundamental. Então, para ser aceito ainda que temporariamente por seus comandados ele se transfigura em algo que não é o que é facilmente perceptível pelos demais mesmo que ele mesmo não perceba. Esta realidade neste meio é mais endêmica do que se pode imaginar. 
Um líder de verdade deve ser ouvinte não falante, deve ser cordato e assumir todas as responsabilidades maiores; deve ser aquele que bate o pênalti no ultimo minuto e que briga pelo coletivo e nunca por ganhos pessoais. O líder autentico tem que ser o melhor, o exemplo; o que protege seus liderados, que enfrenta as dificuldades resguardando os demais. Jamais fugir das responsabilidades tentando transferi-las e suportar toda e qualquer crítica que se faça ao ambiente em que está inserido. Deve ser o esteio, a fortaleza onde os outros podem se sentir seguros e protegidos. Deve encaminhar o time para o lugar correto que lhes ofereça mais possibilidades de sucesso, deve exigir posturas compatíveis com a expectativa de todos. Deve respeitar as diferenças e muitas vezes estimula-las e torna-las de conhecimento solidário para que as potencialidades possam emergir sem limitações. 
Um líder não pode ser fraco ou omisso; não pode ser negligente nem apresentar imperícia naquilo que faz. Não pode deixar que as coisas andem sem o seu dedo demarcando o caminho a seguir. Não  pode ser um impostor tirano que agride, oprime e destrói aqueles que devem ser tratados com carinho e afeto para que possam ter desempenhos adequados para que um time chegue à vitória final. Por fim, cuidado com os falsos líderes. Eles são um perigo.