terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Línguas e balaios!

Carta Capital, 21 de fevereiro de 2011
Sócrates
Línguas e balaios.

O futebol me ofereceu várias e importantes oportunidades. Convivi com a realidade social do meu país, curti seis anos de Corinthians que significam séculos de representatividade do meu povo e conheci todos os continentes além (o que é melhor!) de grande parte do Brasil e de suas inúmeras expressões sócio-culturais e políticas. Aprendi muito com estas experiências e espero que esteja respondendo adequadamente à responsabilidade de portar esta gama de conhecimento que me foi ofertada.
Porém devo confessar que sou um péssimo viajante apesar de adorar encontrar pessoas das mais diversas e com elas trocar energias e produto encefálico. Detesto qualquer ambiente desconhecido não pelo simples fato dele não ter estado ao meu alcance até então e sim por uma paúra inexplicável que carrego desde que me conheço por gente como se só o que fosse parecido com o útero materno me confortasse.
Além disso, tenho uma dificuldade intransponível com as diversas línguas que convivo. Invariavelmente misturo tudo no mesmo balaio o que geralmente torna impossível que alguém menos disponível a me escutar possa entender. Ainda não encontrei a razão para esta dificuldade já que domino o espanhol, estudei francês, entendo tudo do inglês e o leio com facilidade, vivi na Itália por um ano e em pouco tempo já pensava na língua deles o que faço até hoje com naturalidade. Entretanto, todas elas estão na mesma gaveta cerebral e é como se fossem milhares de peças que podem e devem se encaixar, porém com um manuseador que é um baita de um incompetente apesar de esforçado.  
Mas isso não me impede ou impediu de vasculhar cada cantinho dos locais que eu pude ou posso visitar. Principalmente quando me sinto impelido a acreditar que por lá passarei muito tempo. E foi o que ocorreu na Itália. Inesperada e surpreendentemente não tive dificuldades em falar o italiano. Talvez porque existe outro lado da minha personalidade que eventualmente contradiz tudo o que disse acima: quando me interesso por alguma coisa enfrento qualquer obstáculo e o enfrento com serenidade.
É que como tanta gente, apaixonei-me pelo idioma. Sua sonoridade, ternura e uma harmonia sem igual me fascinaram. Nunca fui de notar estas particularidades em língua nenhuma, porém como necessariamente deveria me comunicar nos meses seguinte desta forma não havia como não perceber.
E um detalhe me comoveu: a origem e suas nuances. Assim como o guarani é a única língua da América latina que se preservou de fato depois da colonização, o italiano como hoje o conhecemos tem uma história fantástica e fascinante. E uma íntima relação como Florença, onde vivi. Há bastante tempo a Europa possuía uma coleção de dialetos originários do latim que mais tarde se estabeleceram como italiano, português, espanhol e francês. Contudo, uma diferença entre o italiano e as demais é fundamental reconhecer. Enquanto aquelas se impuseram em função do poder político e econômico já que o espanhol é claramente o madrilenho, o português é o que era o lisboeta e o francês atual é fruto da evolução do parisiense medieval, o italiano não. Na verdade até meados do século XIX a Itália sequer era um país é sim uma sucessão de cidades-estado que se digladiavam o tempo todo controladas por príncipes (que geraram pérolas como a grande obra de Maquiavel) ou outras potencias européias. E até hoje os dialetos das diferentes regiões são utilizados quando se deve ocultar algo de alguém próximo. Sei bem o que é isso já que lá muitas vezes me vi boquiaberto por não entender nada do que se falava a minha volta. Voltando ao italiano, ele é fruto da insistência de um grupo de intelectuais do século XVI que achavam um absurdo não haver uma língua comum ainda que só na forma escrita e que fosse acessível a todos. E foi este grupo que produziu algo inédito ao escolher o mais bonito dos dialetos e o batizou de ITALIANO. E o encontraram na obra de Dante divulgada dois séculos antes. Isto é: o que eles decidiram é que o que seria considerada a língua italiana foi a linguagem pessoal do grande poeta. Logo Dante que havia surpreendido o mundo ao escrever não em latim, como era normal, e sim naquilo que acreditava ser o verdadeiro dialeto florentino falado nas ruas, inclusive Boccaccio e Petrarca, seus contemporâneos. Como podemos ver o italiano não nasceu dos dialetos romanista ou veneziano e sim da linguagem dantesca. Poético como ele só, pois nasceu de um dos maiores poetas da civilização ocidental.
Em tempo: paúra é o que entendemos por medo.